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Vidas nas margens: vulnerabilidades e resistências de pessoas LGBT em situação de rua no Brasil

Cerca de 330 mil pessoas estão em situação de rua no Brasil. Apesar do número expressivo, é desconhecido quantas pessoas são LGBT

The Conversation

The Conversation|Do R7

O número de pessoas em situação de rua no Brasil chegou a mais de 330 mil em 2024, segundo dados do Observatório de Políticas Públicas. Dentro dessa população, marcada por múltiplas vulnerabilidades, um grupo ainda mais invisibilizado é o de pessoas LGBT — lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Apesar de enfrentarem desafios específicos, políticas eficazes de apoio à essa população ainda são escassas, em parte pela ausência de dados nacionais consolidados.

Algumas estimativas ajudam a dimensionar o problema. Em São Paulo, cidade com o maior número de pessoas em situação de rua no Brasil, o Censo da População de Rua de 2021 mostrou que 3% dos cerca de 32 mil indivíduos nessa condição se identificam como transgênero, travestis, agênero ou não-binários. A pesquisa não coleta informações sobre orientação sexual, mas segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, cerca de 5% da população brasileira não se identificou como heterossexual – um número provavelmente subnotificado.

Múltiplos fatores de exclusão

A combinação entre preconceito estrutural e extrema vulnerabilidade cria um cenário de múltiplas opressões, pouco explorado por pesquisas e ainda menos contemplado por políticas públicas. No Núcleo de Estudos em Saúde e Gênero, da PUC-Rio, buscamos analisar como as discriminações se sobrepõem a partir de fatores como raça, gênero, classe e sexualidade.


No Brasil, a intersecção entre o racismo e a vulnerabilidade social é particularmente evidente. Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC 2023) mostram que o perfil da população em situação de rua é majoritariamente formado por homens (87%) e negros (68%). Para pessoas negras LGBT, os riscos se multiplicam.

Ainda segundo o MDHC, os principais motivos apontados para estar em situação de rua incluem conflitos familiares (44%), desemprego (39%) e dependência de álcool ou outras drogas (29%). A ausência de proteção social efetiva agrava esse quadro, empurrando muitos para trabalhos informais e precários, como a coleta de materiais recicláveis (19%) e pedir dinheiro nas ruas (11%).


Entre pessoas LGBT, a expulsão do lar por conta da orientação sexual ou identidade de gênero é uma causa recorrente, embora pouco registrada de forma sistemática. Sem redes familiares e comunitárias muitas dessas pessoas recorrem à prostituição ou à troca de favores sexuais para sobreviver. Por vezes, esse é o único caminho possível para garantir alimentação e estabelecer vínculos de convivência.

Outras violências cotidianas


Pessoas em situação de rua vivem sob condições desumanas e expostas a agressões constantes. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) mostram que, entre 2015 e 2022, 2% das notificações de violência registradas no sistema tiveram como motivação a condição de rua da vítima, o que corresponde a 48.608 registros, ou 17 por dia. A subnotificação, no entanto, é alta, já muitas vítimas não buscam atendimento de saúde, ou não têm sua situação de rua adequadamente registrada.

Em 2022, a maioria dos casos notificados envolvia violência física (88%), seguida por violência psicológica (14%). Em 39% dos casos, as vítimas não conheciam seus agressores; em um terço, os episódios eram recorrentes. Embora representem apenas 13% da população em situação de rua, as mulheres foram alvo de 40% dos casos registrados.

Independentemente da condição de moradia, o Atlas da Violência de 2025 aponta o crescimento preocupante nos registros de violência contra pessoas LGBT. Entre 2022 e 2023, os casos contra homossexuais e bissexuais aumentaram 35%, e os contra pessoas trans e travestis, 43%. Considerando a série histórica de 2014 a 2023, os registros cresceram mais de 1.100% para homossexuais, bissexuais e mulheres trans; 1.607% para homens trans; e mais de 2.300% para travestis. Parte desse aumento está relacionada à redução da subnotificação e à maior segurança para se declarar LGBT nos serviços de saúde, ainda que os dados não informem a motivação da violência.

O caso da Baixada Fluminense

Em minha tese de doutorado, defendida em 2025, no Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, estudei como pessoas LGBT em situação de rua na Baixada Fluminense vivenciam diferentes formas de violência e constroem estratégias de resistência. Identifiquei que a região é, frequentemente, vista como um espaço de agem, onde essas pessoas buscam melhores condições de moradia e sobrevivência.

A pesquisa foi realizada, entre novembro de 2024 e fevereiro de 2025, por meio de oito entrevistas com esse público em quatro cidades da Baixada Fluminense: Queimados, Nova Iguaçu, Belford Roxo e Duque de Caxias. Cinco mulheres trans, um homem trans e dois homens cis gays participaram, contribuindo para revelar histórias de vida e de resistência nas ruas, envolvidas por violências cotidianas de modo combinado: racismo, aporofobia e LGBTfobia.

Os relatos dessas pessoas apontam casos de agressão física, psicológica e institucional, e o isolamento em locais afastados dos centros urbanos tornou-se uma estratégia de defesa e proteção. As redes de solidariedade entre esse público e a sociedade são meios de o a alimentos e outros recursos, como medicação, vestimentas e álcool ou outras drogas.

Como já apontado em estudos e pesquisas, essas pessoas chegam às ruas devido aos conflitos familiares, principalmente por causa do preconceito e da discriminação. De acordo com seus relatos, elas se sentem livres nas ruas para serem quem são. Mesmo diante dos desafios de se viver nas ruas, esse grupo demonstrou ter sonhos e projetos futuros, como cantora, rainha de escola de samba, arquiteto e dona de salão de beleza, por exemplo.

Alguns caminhos possíveis

São escassos os mecanismos de proteção social voltados especificamente para as pessoas LGBT em situação de rua no Brasil. Os abrigos públicos, por exemplo, frequentemente apresentam dificuldades para respeitar identidades de gênero e garantir direitos básicos, como o uso do nome social e a adequação de banheiros e dormitórios.

Apesar da gravidade do quadro, destacam-se iniciativas de resistência e acolhimento. No Rio de Janeiro, ações da sociedade civil como a Casa Dulce Seixas, o Albergue Mais Tempo, Casa NEM, Pretas Ruas,Instituto Lar e Projeto RUAS, oferecem desde alimentação a moradias provisórias e redes comunitárias. No âmbito governamental, destaca-se o Projeto Garupa, voltado para a saúde, e osCentros Pop e equipes de abordagem social, que atuam na defesa de direitos e na reconstrução de vínculos familiares.

Pesquisas sociais têm papel fundamental na construção de diagnósticos mais precisos e na visibilidade de experiências muitas vezes ignoradas pelas estatísticas. O conhecimento é essencial no combate ao preconceito e à discriminação propagada por discursos racistas e LGBTfóbicos. Garantir proteção e respeito aos direitos dessa população é responsabilidade de toda a sociedade.

Diante de tantas lutas e resistências, é possível imaginar uma vida digna além da situação de rua. Apoiando-nos na pedagogia da esperança de Paulo Freire, acreditamos que a superação da condição depende de um projeto de sociedade que defenda a humanização e a cidadania desses sujeitos, primando pela afirmação de um projeto democrático, igualitário e justo de sociedade.

Ricardo William Guimarães Machado não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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